And I stood upon the sand
2013
Galeria Mercedes Viegas Arte Contemporânea, Rio de Janeiro
Curated by Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho
Photos by Wilton Montenegro
(Original text in Portuguese, English translation soon)
A arte não reproduz o visível, mas torna visível
Paul Klee, em Confissão Criadora, 1920
‘Não vou em busca do espaço. Trabalho o espaço que vivencio. É o espaço que me acha’. Com esse testemunho a artista plástica Regina de Paula narra sua poética a partir do relato de sua viagem a Jerusalém em janeiro de 2013. Sua imersão na cidade histórica e religiosa, a experiência no caminhar, na observação do deserto e dos monumentos, a sensação do vento, o silêncio do horizonte árido foram singelamente captados a partir do vídeo Bandeiras, realizado próximo às ruínas arqueológicas de Advat, cidade habitada até o século VII, onde a única presença humana só pode ser identificada no som do tremular contínuo das bandeiras de Israel e da Unesco.
Foi nesse ambiente, aparentemente distante, que Regina introduz a Bíblia aos demais elementos recorrentes e explorados em seus trabalhos anteriores, como em Cubo paisagem em Nudez e Território de 2009, nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. As areias e a água do mar da praia de Copacabana, local onde habita, a presença dos cubos e castelos de areia, a relação com o espaço urbano. A essa temática vivenciada, a artista sobrepõe sua preocupação com o transitório, o tempo, o efêmero, o devir. Não é somente a água do mar que invade a areia, destruindo cubos perfeitos ou castelos idílicos, mas é também o vento que corrói e desfigura a construção arqueológica, cubos de pedra que retornam à matéria original.
A Bíblia não surge aqui como um elemento dissociado desse inventário de sensações. Ela não tem um caráter puramente místico, mas sim conectado a mudanças que se processam em torno de nós, hoje, a todo momento, sem perder sua dimensão histórica. São também elementos que nos fazem refletir sobre como ela se transforma de símbolo religioso, evangelizador, em matéria civilizatória, redutora e até opressora.
Em seu primeiro conjunto de fotografias da exposição, todas realizadas em parceria com Wilton Montenegro, Regina ‘escava’ bíblias, recortando o centro, construindo cubos virtuais, ou cubos negativos, como denomina. Nesse exercício, por trás dos versículos recortados e inter-rompidos, surge a paisagem, a visão do mar da Galileia, desertos e montanhas de pedras.
Regina ainda intervém sobre as bíblias, onde após manipulá-las, acrescenta seus elementos recorrentes. Se na primeira ela mantém o espaço vazio, como se a paisagem estivesse lá para ser desvendada, na segunda ela preenche o cubo com a areia de Copacabana, numa alusão a tudo que pode ser recoberto pelo tempo e transformado. Nas outras duas intervenções a artista explora um novo referencial, introduzindo uma dimensão político histórica em seu trabalho, transfigurando o mesmo objeto.
Ao realizar a imersão de uma das bíblias no mar de Copacabana, em uma performance para fotografia com a jovem artista Anais, Regina resgata a imagem do batismo. Trabalha novamente com a ideia de transformação, como rito, ou de uma ‘remissão de pecados’ (Marcos, 1:4-5). O banho na Bíblia, que se mistura à areia da praia, a mesma presente na paisagem do deserto, lava não só as páginas, mas os excessos da civilização. Levanta a possibilidade da regeneração ou de uma nova salvação. Água de Copacabana, água do Jordão.
Regina então opera um jogo de imagens e símbolos em que, desse batismo do objeto, verte água sobre índios bororós, registrados em fotografia de 1894 de José Severino Soares. É a purificação do espectador, daquele que se evangeliza e aceita algo talvez superior, ordenador. Mas é também uma ordem dividida, resultado de uma sociedade partida, como ilustra a bíblia lacerada ao lado da imagem: E vos tomarei dentre os gentios, e vos congregarei de todas as terras, e vos trarei para vossa terra. Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados, de todas as vossas imundícies e de todos os vossos ídolos vos purificarei. E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo, e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. (Ezequiel, 35:24-27)
Da mesma forma, em outra bíblia, a pirâmide (ou templo?) semienterrada num dos cubos escavados reforça a deglutição de uma cultura pela outra, um senso de domínio e conquista, não pela força, mas pela palavra.
O deserto em que Regina pisou, e ‘ficou de pé’, não estava tão longe daqui, como ela mesmo se refere, e foi de lá que ela confirmou e reinseriu suas temáticas nesta exposição. Seu processo de investigação e sua busca lembra muito o que o artista e professor Klee escreveu em 1924 por ocasião de sua vernissage em Weimar: Muitas vezes imagino uma obra muito vasta, que englobe todos os domínios: o elementar, o concreto, o conteúdo e a forma. Isto certamente não passará de um sonho…..Nada deverá precipitar-se. É preciso que a obra cresça, se desenvolva e quando estiver concluída tanto melhor. Devemos continuar a procurar […]. Sim, Regina não se cansa, ela continua a escavar.
Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho