E fiquei de pé sobre a areia
2014

Galeria Mercedes Viegas Arte Contemporânea
Curadoria Luiz Chrysostomo
Fotografia Wilton Montenegro

A arte não reproduz o visível, mas torna visível
Paul Klee, em Confissão Criadora, 1920

‘Não vou em busca do espaço. Trabalho o espaço que vivencio. É o espaço que me acha’. Com esse testemunho a artista plástica Regina de Paula narra sua poética a partir do relato de sua viagem a Jerusalém em janeiro de 2013. Sua imersão na cidade histórica e religiosa, a experiência no caminhar, na observação do deserto e dos monumentos, a sensação do vento, o silêncio do horizonte árido foram singelamente captados a partir do vídeo Bandeiras, realizado próximo às ruínas arqueológicas de Advat, cidade habitada até o século VII, onde a única presença humana só pode ser identificada no som do tremular contínuo das bandeiras de Israel e da Unesco.

Foi nesse ambiente, aparentemente distante, que Regina introduz a Bíblia aos demais elementos recorrentes e explorados em seus trabalhos anteriores, como em Cubo paisagem em Nudez e Território de 2009, nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. As areias e a água do mar da praia de Copacabana, local onde habita, a presença dos cubos e castelos de areia, a relação com o espaço urbano. A essa temática vivenciada, a artista sobrepõe sua preocupação com o transitório, o tempo, o efêmero, o devir. Não é somente a água do mar que invade a areia, destruindo cubos perfeitos ou castelos idílicos, mas é também o vento que corrói e desfigura a construção arqueológica, cubos de pedra que retornam à matéria original.

A Bíblia não surge aqui como um elemento dissociado desse inventário de sensações. Ela não tem um caráter puramente místico, mas sim conectado a mudanças que se processam em torno de nós, hoje, a todo momento, sem perder sua dimensão histórica. São também elementos que nos fazem refletir sobre como ela se transforma de símbolo religioso, evangelizador, em matéria civilizatória, redutora e até opressora.

Em seu primeiro conjunto de fotografias da exposição, todas realizadas em parceria com Wilton Montenegro, Regina ‘escava’ bíblias, recortando o centro, construindo cubos virtuais, ou cubos negativos, como denomina. Nesse exercício, por trás dos versículos recortados e inter-rompidos, surge a paisagem, a visão do mar da Galileia, desertos e montanhas de pedras.

Regina ainda intervém sobre as bíblias, onde após manipulá-las, acrescenta seus elementos recorrentes. Se na primeira ela mantém o espaço vazio, como se a paisagem estivesse lá para ser desvendada, na segunda ela preenche o cubo com a areia de Copacabana, numa alusão a tudo que pode ser recoberto pelo tempo e transformado. Nas outras duas intervenções a artista explora um novo referencial, introduzindo uma dimensão político histórica em seu trabalho, transfigurando o mesmo objeto.

Ao realizar a imersão de uma das bíblias no mar de Copacabana, em uma performance para fotografia com a jovem artista Anais, Regina resgata a imagem do batismo. Trabalha novamente com a ideia de transformação, como rito, ou de uma ‘remissão de pecados’ (Marcos, 1:4-5). O banho na Bíblia, que se mistura à areia da praia, a mesma presente na paisagem do deserto, lava não só as páginas, mas os excessos da civilização. Levanta a possibilidade da regeneração ou de uma nova salvação. Água de Copacabana, água do Jordão.

Regina então opera um jogo de imagens e símbolos em que, desse batismo do objeto, verte água sobre índios bororós, registrados em fotografia de 1894 de José Severino Soares. É a purificação do espectador, daquele que se evangeliza e aceita algo talvez superior, ordenador. Mas é também uma ordem dividida, resultado de uma sociedade partida, como ilustra a bíblia lacerada ao lado da imagem: E vos tomarei dentre os gentios, e vos congregarei de todas as terras, e vos trarei para vossa terra. Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados, de todas as vossas imundícies e de todos os vossos ídolos vos purificarei. E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo, e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. (Ezequiel, 35:24-27)

Da mesma forma, em outra bíblia, a pirâmide (ou templo?) semienterrada num dos cubos escavados reforça a deglutição de uma cultura pela outra, um senso de domínio e conquista, não pela força, mas pela palavra.

O deserto em que Regina pisou, e ‘ficou de pé’, não estava tão longe daqui, como ela mesmo se refere, e foi de lá que ela confirmou e reinseriu suas temáticas nesta exposição. Seu processo de investigação e sua busca lembra muito o que o artista e professor Klee escreveu em 1924 por ocasião de sua vernissage em Weimar: Muitas vezes imagino uma obra muito vasta, que englobe todos os domínios: o elementar, o concreto, o conteúdo e a forma. Isto certamente não passará de um sonho…..Nada deverá precipitar-se. É preciso que a obra cresça, se desenvolva e quando estiver concluída tanto melhor. Devemos continuar a procurar […]. Sim, Regina não se cansa, ela continua a escavar.

Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho