A fotoperformance é campo ainda pouco compreendido, justamente por se constituir como linguagem híbrida, aliando performance e fotografia, sem que as características de uma possam sobrepor-se e anular a outra. Desde seus primórdios, a performance caracterizou-se como ação efêmera, geralmente acompanhada da fotografia como dispositivo capaz de documentar e salvaguardar a memória dos fatos. A partir dos anos 60-70, no entanto, alguns artistas começaram a utilizar a fotografia não mais como mero registro, mas em relação intrínseca com a própria ação, substituindo a presença da plateia pela lente da câmera. A imagem fotográfica, antes uma coadjuvante, transformava-se então em imagem-conceito, num processo de natureza particular, que a conduzia para além de qualquer entendimento condicionado apenas a seu caráter documental (como registro de ação) ou à condição de fotograma convencional da linguagem cinematográfica (película do cinema), ou mesmo à vontade de estetização da imagem (a “arte da fotografia”). 1

No Brasil em especial, artistas de diferentes gerações dedicaram-se, embora não de modo exclusivo, à fotoperformance, destacando-se alguns trabalhos que de modos variados podem ser entendidos como tal: Poemas visuais/Língua apunhalada (1968), de Lygia Pape, P…………H………. (1969) e Des compressão……..compressãoDes. (1973), de Artur Barrio, Para um jovem de brilhante futuro (1974), de Carlos Zilio, Brasil nativo/Brasil alienígena (1977), de Anna Bella Geiger, Homenagem a George Segal (1975), Poema (1979) e Procuro-me (2001), de Lenora de Barros, Semeando sereias (1987), de Tunga, A coleta do orvalho (1994) e A coleta da neblina (1998), de Brígida Baltar, Quando todos calam (2009), de Berna Reale, entre outros. É nesse contexto que podemos pensar certos aspectos referentes aos trabalhos recentes de Regina de Paula aqui abarcados, produção que teve início com a série Sobre a areia (2014), em que uma jovem interage com um livro-objeto, concebido a partir de uma bíblia parcialmente escavada. O interesse da artista pela fotoperformance reside na ideia de fragmentação da imagem como uma essência, deixando vislumbrar uma narrativa suspensa em cada instante capturado pela câmera.

De início, o fato de Regina de Paula assinalar que esses trabalhos são fotoperformances não garante que sejam apreendidos e compreendidos desse modo – não no sentido de uma categorização que reduza as possibilidades semânticas dessas séries, enquadrando-as numa espécie de conceito-etiqueta fechado, mas de modo a fazer justamente o contrário, ou seja, estimular que certos aspectos a elas intrínsecos possam ser acessados, numa mirada mais ampla e aberta. É preciso considerar que, no contexto de uma publicação de artista, é possível que de fato esses trabalhos sejam visualizados apenas como fotografias, concordando-se, no entanto, que, isoladas ou em conjunto, elas já são capazes de insinuar movimento e uma duração no tempo. Indo um pouco mais além, são imagens fotográficas que guardam em si dupla natureza: constituem-se como imagens autônomas (fotografias) e, ao mesmo tempo, apresentam-se como partes de um todo, de uma sequência, constatação implícita no modo como são apresentadas página a página. No livro e fora dele, a série Sobre a areia reafirma essa característica, uma vez que esse trabalho, de modo particular, constitui-se como fotoperformance não só nas páginas da publicação, mas também por meio de uma sequência de fotografias impressas, expostas de modo a reforçar uma história – seja pela presença seja pela ausência de certas imagens na montagem (como lapsos temporais, elipses na narrativa, reforçando a ideia de que nem tudo pode ser capturado, mas sim imaginado).

Se isso é válido para Sobre a areia, há, no entanto, nas séries posteriores de Regina de Paula, outra problemática inerente: embora sejam visualizadas no livro como imagens fotográficas, apresentam-se, quando expostas, como vídeos, sendo imagens apreendidas uma a uma pelo espectador, à medida que são projetadas numa superfície que lhes sirva de anteparo. Desse modo, além do hibridismo entre performance e fotografia, essas fotoperformances apresentam relação íntima com uma terceira linguagem, estando próximas da noção de imagem sequencial – as séries apresentadas em stop motion, técnica muito utilizada no cinema de animação, não são videoperformances propriamente ditas, mas poderiam ser entendidas, se não completamente pelo menos em sentido estrutural, como exemplos de “quase-cinema”, conceito desenvolvido por Hélio Oiticica, em parceria com Neville D’Almeida, na década de 1970, uma vez que a narrativa temporal ocorre principalmente através da projeção de slides (sem, todavia, recorrer ao som), reforçando a ideia de que a noção de “imagem em movimento” extrapola em muito a categoria “cinema”.

De modo geral, em seu processo de concepção, no caso das séries de fotoperformances de Regina de Paula, duas técnicas sobressaem. 2 Por um lado, a mise-en-scène, quando a encenação performática é realizada diretamente para a objetiva, de modo a resultar em um conjunto de imagens expressivas e visualmente potentes. Por outro, a montagem, quando aquilo que é capturado pela câmera durante a ação é apresentado posteriormente numa sequência lógica, definida no processo de pós-produção, construindo sentidos não necessariamente idênticos aos do ato performativo em si. Desse modo, ação (performance) e imagem (fotografia) partilham de uma mesma intencionalidade artística, que ora dirige a ação para a câmera, ora edita o material capturado, compreendendo como essas duas instâncias se distinguem e simultaneamente permanecem em constante simbiose. Isso é tão evidente no caso dos trabalhos de Regina de Paula, que não é a artista quem atua ou opera o aparelho fotográfico, tornando-se antes uma espécie de “diretora de cinema”, orientando todo pormenor em cada etapa, da pré à pós-produção. 3 Mas há ainda outro aspecto de grande pertinência: a narrativa. Ela é o elemento que tece a ligação entre estes dois momentos – ação e imagem –, estabelecendo uma terceira temporalidade (diferente do tempo da ação performativa e igualmente do tempo da imagem fotográfica), posto que norteia todo o processo da artista, em busca de um resultado final específico (narrativa que se dá no tempo e constrói um sentido para a história a ser contada por meio de imagens), e que é depois apreendida, seja de que modo for, pelo espectador.

Nas séries de fotoperformances de Regina de Paula essa narrativa assume um tom alegórico. Cabe considerar certos aspectos relativos à origem desses trabalhos. Criados após uma viagem da artista a Israel, as ações procuram desenvolver um paralelo entre Jerusalém – a “cidade santa”, de forte apelo místico para as três maiores religiões monoteístas – e o Rio de Janeiro – cidade na qual Regina de Paula vive e trabalha, local marcado pela relação ora harmoniosa ora conflitante entre cultura e paisagem natural –, sem que, no entanto, essas referências geográficas sejam de fato explicitadas nos trabalhos. Ao recorrer a esses lugares (visual, espacial, cultural e/ou ideologicamente), o intuito da artista foi não só transportar o contexto bíblico para a cidade do Rio de Janeiro, como também propor
leituras cruzadas entre o cunho milenar de Jerusalém – sua fundação data do IV milênio antes de Cristo, tornando-a uma das cidades mais antigas do planeta –, e processos civilizatórios ocorridos no Novo Mundo, tendo a história e a paisagem carioca, em contínua transformação, como contexto para suas ações. Desse modo, ao eleger Jerusalém, por seu caráter místico, tradicional e cosmopolita, Regina de Paula realiza uma leitura da paisagem e da história do Rio de Janeiro como alegoria da história da humanidade, isto é, pelo particular aborda temas universais, comuns a um número considerável de pessoas. 4

Sobre a areia, 2014 Fotografia 43 x 65 cm (cada)

Na fotoperformance Sobre a areia uma jovem, sem que possamos reconhecer sua identidade, encontra-se numa praia, segurando um livro de capa preta. À medida que a ação ocorre, é possível identificar a natureza desse livro: trata-se de uma Bíblia, cujo miolo foi previamente recortado (o corte evidencia a presença de um quadrado). Diante de nossos olhos, com o soprar do vento, esse pequeno “livro” no interior de outro livro tem suas páginas reviradas, provocando o (des)encontro de trechos narrativos diferentes entre si, numa variedade finita de cruzamentos e infinita de significados, até o momento em que a presença física do livroobjeto é confrontada com a água do mar. A água que limpa, por sua força, também destrói, induzindo a jovem a arrancar essas pequenas páginas no interior da Bíblia – constitui-se assim uma lacuna, uma ausência, um vazio a ser preenchido, seja pela areia seja pela água do mar. Em certo momentos, é difícil mesmo estabelecer onde começa uma coisa e termina a outra, livro, água e areia formando um todo visualmente informe. O movimento das ondas parece enfim lavar pouco a pouco não só as palavras contidas no texto, como as histórias, saberes e doutrinas que o livro reúne, ato que constitui simbolicamente uma espécie de ritual de purificação. Em duas outras séries posteriores, bíblias são manipuladas por jovens negros, em contextos em que a relação com a paisagem passa a ser predominante – elementos como areia, rochas, vegetação, mar, nuvens e céu aparecem com muito mais força. Há também a presença de imagens: ora uma madona com o menino Jesus, ora uma representação da Pietá, em que a mãe dolorosa aproxima a face do rosto pálido de seu filho morto – reforçando a exegese da narrativa bíblica, em que uma cena parece prenunciar a outra. Confrontados com o horizonte, esses livros são continuamente manipulados: submersos, partidos, rasgados, arremessados em direção ao mar, fazem parte também de um ritual. Em sentido metafórico, a areia do deserto dá lugar à areia da praia, e aquilo que num primeiro momento sugeriria purificação, agora parece insinuar libertação, física, psíquica e moral.

Diferentemente das três fotoperformances anteriores, há outra série em que o que se vê é um espaço fechado, escuro, o interior de uma fortaleza; nesse local transita uma jovem negra com vestes brancas, fluidas, por vezes vaporosas. De fato, esta última série, em especial, apresenta um tom “fantasmagórico”: frente à imobilidade do cenário, à maior fixidez da câmera fotográfica, o movimento da jovem nega-se a assumir a mesma qualidade de imagem do espaço que ocupa, borra a superfície e mantém na imagem a fluidez simbólica da água do mar presente nas séries anteriores. Há uma proximidade da imagem insinuada daquela mulher em movimento com a mancha esbranquiçada na parede de pedra, como se, algumas vezes, uma fosse a manifestação da outra, à medida que os olhos do espectador percorrem aquele espaço – ou a superfície da imagem. A Bíblia, nesse caso, ausente da fotoperformance, aparece em uma única imagem-síntese: sozinha, aberta, diante do enquadramento de uma janela, cujo horizonte marca o encontro entre a superfície da água e o céu. Exposta na contraluz, é justamente a iluminação externa, no fundo da imagem, que destaca o livro apoiado no parapeito da janela, em contraste com o interior escuro daquela fortaleza. A relação interior/exterior e a metáfora do livro como ponte parecem ambas sintetizadas nessa imagem, que insinua algo para além de si mesma: mais do que o desejo, o poder sobre ele. O corpo da mulher, tanto quanto o corpo negro, foi dogmatizado, doutrinado, submetido ao controle físico e moral: seja no decorrer da história seja naquilo que persiste, no que ocorre e é ainda perceptível na atualidade.

Não se abstendo dos aspectos políticos, tanto quanto dos iconográficos, as fotoperformances de Regina de Paula não se permitem ser reduzidas ao âmbito da ilustração moral ou política, nem ao campo religioso ou histórico, e guardam aí sua força e potência enquanto arte – nas suas dimensões reflexiva, crítica e transformadora. A escolha da Bíblia como objeto de investigação artística no contexto contemporâneo pode parecer, a princípio, uma escolha anacrônica – embora o anacronismo seja uma das características mais comuns no modo como nos relacionamos com o passado 5 –, com o risco de exemplificar temas, agendas religiosas e pautas de militância política (com o intuito de instruir, denunciar ou mesmo reivindicar). Todas essas camadas estão implícitas nas fotoperformances de Regina de Paula; não se excluem, contudo, nem se tornam preponderantes a ponto de inviabilizar aquilo que somente a arte, a seu modo, é capaz de dizer, re(a)presentar ou mesmo enunciar.


1. Algumas ideias desenvolvidas neste texto desdobraram-se a partir do ensaio Fotoperformances – passos titubeantes de uma linguagem em emancipação, de Luciano Vinhosa, publicado nos Anais do 23o Encontro Nacional da Anpap, Belo Horizonte, 2014, p. 2876-2885. Disponível em: http://www.anpap.org.br/ anais/ 2014/ANAIS/simposios/ simposio08/Luciano%20Vinhosa. pdf. A pesquisadora Regina Melim utiliza a expressão “açõ es orientadas para fotografia e vídeo” ao referir-se a trabalhos que, por meio de um conjunto de ações empreendidas diante da câmera, acabam por instaurar a imagem do corpo como matéria artística, sem recorrer a sua presença física, literal (Cf. Melim, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2008).

2. “Em observação ao repertório da fotoperformance desenvolvido em seus momentos experimentais, podemos estabelecer ao menos três modos técnicos mais recorrentes em que se apresentou ou ainda se apresenta ao público: 1) colagem; 2) montagem e 3) mise-en-scène. As três técnicas podem, no entanto, aparecer combinadas ou individualizadas em um mesmo trabalho, mas o que as religa intrinsecamente é o fato de tomarem a produção da imagem como suporte artístico privilegiado, conferindo-lhe autonomia discursiva, a ação pensada para esse fim específico” (Vinhosa, op. cit., p. 2882).

3. A metáfora do artista como diretor de cinema aparece em Bourriaud: “O artista trabalha exatamente como um diretor que seleciona, de fato, o que vai se passar na frente da câmera. (…) Os artistas contemporâneos são diretores, essa é sua condição natural, quase espontânea” (Bourriaud, Nicholas. O que é um artista (hoje)? Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, EBA-UFRJ, Rio de Janeiro, ano X, n. 10, p. 78, 2003). Bourriaud recorre ainda ao conceito de pós-produção para enfatizar essa observação, “termo técnico usado no mundo da televisão, do cinema e do vídeo” e que “designa o conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a montagem, o acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos especiais” (Bourriaud, Nicholas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 7).

4. Em termos literários, alegoria é uma figura de linguagem em que uma história é interpretada à luz de outra. Reforçando essa ideia, há pelo menos quatro diferentes acepções do termo: 1. modo de expressão ou interpretação que consiste em representar pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada; 2. método de interpretação aplicado por pensadores gregos aos textos homéricos, por meio do qual se pretendia descobrir ideias ou concepções filosóficas embutidas figurativamente nas narrativas mitológicas; 3. texto filosófico escrito de maneira simbólica, com intuito de apresentar figuradamente ideias e concepções intelectuais; 4. obra de artes visuais que, por meio de suas formas, representa uma ideia abstrata.

5. Cf. Didi-Huberman, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015.