Elementary treatise of architecture
2012
Galeria Mercedes Viegas Arte Contemporânea, Rio de Janeiro.
Curated by Marcelo Campos
Photos by Wilton Montenegro
(Original text in Portuguese, English translation soon)
Os tratados de arquitetura foram amplamente difundidos a partir do Renascimento italiano. Vitruvio desenvolveu seu tratado ainda na Antiguidade, em 27 a.C, e inspirou Alberti a criar o primeiro tratado da época moderna. Estes escritos guardam um sentido de normatização, aplicação de regras, leis universais. Nos tratados barrocos, as perspectivas são mais de interiores do que exteriores. No século XIX, tal empreendimento fora questionado por autores como Violet Le Duc. No século XX, as revistas ocuparam o lugar dos tratados, publicando textos de grandes arquitetos que empreendiam considerações sobre forma, espaço, lugar. A função de tais livros mantinha-se como manual de estilos e estruturas. E os tratados, então, elaboravam uma gramática para ávidos artistas, agora fartamente ilustrados com perspectivas, croquis, etc. As plantas não possuem cotas ou medidas, os desenhos não têm legendas explicativas. Alem dos projetos de arquitetura, as revistas, como um número dedicado a Mies van der Rohe, apresentavam mobiliários. Ao pensarmos nas artes, os manifestos das vanguardas e os textos de artista também criaram grandes relações com aquela antiga modalidade de escrita elementar da arquitetura. Em outro sentido, os escritos do grupo situacionista, pensando arquitetura e urbanismo em fins dos anos 1950, propunham modos de apreender as cidades, deambulações do corpo sobre espaços que, a partir da interação dos sujeitos, se tornariam construções espontâneas. Pensar a arquitetura e as cidades. É desta observação que parte o trabalho da artista Regina de Paula.
A ocupação de um campo visual “ao traçar linhas, ao dispor palavras ou ao repartir superfícies” desenha, também,“partilhas do espaço comum”, “certas formas de habitação do mundo sensível”. Ranciére traça tal afirmação refletindo sobre as imagens num mundo repleto de design. Na relação entre imagem e arquitetura poderíamos nos perguntar: como lidar com os “princípios de unidade”, os pavimentos-tipo, ohomem-modulor, conceito de Le Corbusier? Tal homogeneidade fora questionada pela pletora caóticadas imagens de consumo, mercadorias e pela própria constituição das cidades que não cabia no desenho do maestro-construtor. O que fazer de um espaço que se desmancha pelo uso, sempre recodificando seus sentidos?
Regina de Paula busca o vazio, o dia feriado, o horário não comercial, em espaços arquitetônicos vivenciados, no dia-a-dia, pelo fluxo intenso de passantes na citada sociedade de consumo. Assim, gradis, letreiros, sarjetas tornam-se inanimados, perdem o sentido, a função e ganham a perplexidade de uma observação perscrutadora, desconfiada. Criam-se alvos sobre momentos de ausência. Suspendem-se as performances cotidianas. As formas e linhas superpostas são, ao mesmo tempo, estrutura e ornamento, desenho e escultura. O princípio da unidade é questionado na dissolução das ações, dos gestos. Nos espaços vazios, a quem interessa estas passagens? A perspectiva dos corredores contribui para imantar os espaços de certa transcendência. Podemos arriscar o termo “magia”. A falsa segurança empreendida pela sociedade de consumo, pela veleidade do desejo torna-se ameaçada por usos indeterminados fora do horário de funcionamento, num simples entremeio de uma jornada. E assim a cidade é habitada pela presença de outros atores, infames, até então. Como são perigosas as liminaridades!
O interesse pela arquitetura na arte contemporânea ativou distintos sentidos. Funcionara como critica à instituição, paradigma da escultura, problematização de contextos socioculturais. Regina de Paula descola desenhos e funções, linhas tornam-se fantasmagóricas, funcionando como aparições. Existiria um privilégio do desenho sobre a cor? Em texto, Carl Andre propõe a “escultura como lugar”. Regina de Paula pensa o desenho como lugar, marcando contornos, inventando geometrias, ficcionando coordenadas, arestas que deslocam e superpõem cantos, corredores, plantas baixas, como vemos na série “Não-habitável”, a partir de fotografias de um shopping em Copacabana.
Na construção de objetos, a artista recorre à engenharia de castelos, lugar da infância, imaginação, fábula. Na série de fotografias denominada “Castelo atlântico”, o desmanche, a liquefação, a subversão infantil da destruição anunciada que prenuncia a tristeza do desfazimento. Ainda assim, a utopia de construir novamente, mais rápido, em locais quase seguros, antes que a onda venha e os destrua. Ao deixar a praia, as alamedas de prédios, a fria arquitetura. Difícil traduzir a sensação de frescor e salinidade do corpo ao sair do ritualístico banho de mar e enfrentar as ruas repletas de prédios, carros, fumaças de canos de descarga, e os sujeitos semi-nus com areias nos pés, cambaleantes, de visão turva produzida pelos efeitos iridescentes do sol. Copacabana. O lúdico agride a negação do ócio. Em vez de nostalgia pela perda do paraíso, resta-nos brincar com as tarefas do porvir, enfrentando quarteirões, elevadores, escadas rolantes.
Nos templos, Regina cria a dualidade nas cores preto e areia. A borracha e a areia constituem os elementos amalgamados para o brinquedo oco, cuja visualidade se apresenta como intransponível, própria à firmeza das construções religiosas.
Em “Tratado elementar de arquitetura”, Regina de Paula apropria-se do livro de Giacomo Vignola, um tratado, e ocupa o lugar fictício das ilustrações. Propõem-se traçados de plantas baixas, abrem-se páginas, alocam-se corredores. A apresentação desta série ocorre de duas maneiras: o livro original com as páginas abertas e uma série de fotografias em que a artista encena a leitura. Nas imagens, uma sequencia onde as mãos folheiam o tratado. Ali, os desenhos propostos por Regina, em cópias heliográficas do original, excedem-se ou reduzem-se em dobras. Sabemos que as ilustrações nos tratados foram colocadas a posteriori, ou seja, a imagem se sobrepôs à escritura. A artista, assim, imagina desenho sobre desenho, desagregando texto e ilustração.
Estes são os interesses do trabalho de Regina de Paula, deambular pela cidade, observar espaços da memória ou estrangeiros como se observa a superfície de uma cena para a criação. E, a partir dos gestos, conectar linhas, abrir perspectivas, camadas, páginas, inventar e superpor imagens. Sim, inventam-se lugares animados pelo entremeio da arte, por aquele ambiente que para sempre se tornará um vazio ativado, uma liminaridade predicativa. Criam-se dispositivos de desagregação e reintegração. Paisagens são lugares e superfícies para projeções da imaginação. O menino levanta o braço, abre a mão e sustenta um castelo. Ela, então, repete o gesto, irmanando-se, aparentando-se ao anônimo. “O que resta quando se subtrai o fato de que você levanta o braço, o fato de que seu braço se ergue?”, pergunta o filósofo e crítico de arte Arthur Danto a partir do axioma filosófico de Wittgenstein. Ainda que os gestos sejam idênticos, aqui poderíamos complexificar a querela com a constatação do antropólogo Cliford Geertz. O que resta é a densidade da descrição, um mesmo gesto abençoa, aniquila, exercita, xinga, testa, fantasia. A artista, então, iguala seus gestos aos gestos comuns de folhear um livro, rabiscar, posar para a fotografia, erguer o braço, atravessar os corredores da urbe como quem atravessa a passagem dos templos ou as páginas de um livro infinito, brincando com a criança de edificar monumentos com areias das cidades à beira-mar.
Marcelo Campos
Curador